O incrivel hiato entre Direito e Tecnologia

Uma crítica contundente que aparece, costumeiramente, em minhas aulas de negociações ou de gestão de contratos de tecnologia é a ausência ou a escassez de legislações adequadas ao mundo tecnológico.

Em negociações, que envolvam grandes aquisições de TI, é comum que a área de tecnologia transfira algumas responsabilidades ao setor jurídico da própria empresa para validação e, estes, quase de forma unânime, se sentem fragilizados pela dificuldade de compreensão de termos e expressões técnicas que não são inteligíveis, sem uma tradução adequada ou sem uma legislação especifica que os apoie. Além disso, o trabalho em silos, atualmente, faz com que esta problemática entre advogados e gestores de tecnologia atinjam proporções, em alguns cenários, praticamente de conflito. Perde a corporação, pois seus contratos de tecnologia se tornam frágeis a luz do negócio realizado, causando impactos desproporcionais após o fechamento do acordo. A solução posterior quase sempre passa por enfrentar um litígio com o fornecedor, expert no tema, ou assumir prejuízos por interpretações ou negociações equivocadas.

O tema pode não parecer novo, pois sempre houve um descompasso entre o direito positivo e as transformações na sociedade. Isso é fato. Sabemos que as legislações são de natureza conservadora. São criadas de forma a refletir algo que já acontece no seio da sociedade há algum tempo e que tenha uma consolidação e fundamentação mínima para suportar a norma legal. Sempre posteriores ao anseio da maioria da sociedade. Tudo isso com o desejo de, sempre, se fazer a melhor justiça.

Já é de conhecimento geral, pelo menos na comunidade jurídica, que na retaguarda do direito, há ciência e, consequentemente, anos de desenvolvimento social, evolução doutrinária e jurisprudencial. Tudo a seu tempo dizem os juristas. Mas o questionamento que nos assalta é qual o ritmo de atualização deste novo direito necessário em um mundo em que a transformação digital tem impactado modelos de negócio seculares? Será na mesma proporção ou se manterá conservador e lento?

O nome do jogo, no mundo digital, agora é imprecisão ! Esta dúvida legal que assolam casos concretos, agora em uma outra dimensão, realmente perturbam a boa aplicação do direito tradicional como foi concebido. O real agora é digital. Como conduzir, orientar e punir comportamentos virtuais, se as provas, rastros e os vestígios são sempre de uma imprecisão exponencial? Praticamente tudo pode ser alterado, modificado, invadido, desconfigurado, manipulado, forjado no cenário, onde a internet é o principal campo de batalhas. Basta a reunião perfeita da tecnologia adequada com a boa ou com a má intenção.

A inteligência artificial(IA) promete acelerar ainda mais este problema de descompasso legal, quando má utilizada. Cito, apenas, um exemplo: é perfeitamente possível um processo de criação de “deep fakenews”, por exemplo, através de nossa voz armazenada em bancos de dados de aplicativos de mensagens instantâneas, que gerariam informações falsas, como se verdadeiras fossem, através de IA, simplesmente pela combinação da voz aplicada a uma frase gerada, de forma aleatória, nunca dita realmente, mas que estará em uma mídia digital como se, agora, real fosse. Como nos proteger deste nível de agressão e ficção?

Uma das grandes legislações que surgem, no Brasil, para tentar amenizar este problema é a da lei geral de proteção de dados pessoais (Lei 13709/2018), a LGPD. Afinal voz também é biometria e dado pessoal. Esta lei isolada não resolve o exemplo acima, de forma definitiva e integral, mas é um início de evolução para construirmos marcos legais que se antecipem ao problema técnico, antes que pragas virtuais se disseminem por redes sociais e aplicações desenvolvidas por criminosos digitais.

Nesta seara vem outro questionamento: é possível aproximar, de forma acelerada, o direito da tecnologia para que surjam os conhecimentos necessários para impor serenidade, privacidade e segurança no mundo virtual? É possível que sejam estabelecidos normas e princípios antes que a velocidade técnica nos remeta a um caos legal no cyberespaço? Será que vamos suportar o “tsunami” tecnológico aplicado as nossas vidas sem uma segurança legal que controle sistemas de inteligência artificial aplicados as nossas atividades? Como controlar as assistentes virtuais em nossos smartphones ou aquelas que monitoram nossa voz e comandam todos os equipamentos eletrônicos presentes em nossas residências? quem será responsabilizado? O fabricante da assistente virtual ou fabricante da smart tv ou da geladeira? O direito surfará esta onda gigante ou permitirá o surgimento de corpos mutilados na arrebentação? Advogados e gestores de tecnologia conseguirão trabalhar, de forma harmônica, na negociação e interpretação de um contrato de IA que fragiliza o poder econômico do contratante? Contratos farão a previsão de separação dos dados pessoais dos dados dos equipamentos gerados através de aplicações da internet das coisas?

A OCDE ( Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico) lançou há menos de dois meses as diretrizes que devem nortear empresas, academia e governos para a construção e desenvolvimento de aplicações de IA. O documento foi assinado por 42 paises, entre eles, o Brasil. É um começo que exigirá legislações nacionais, estaduais e municipais.

Mas estamos preparados?

Penso que ainda engatinhamos. Há uma distância muito grande entre o direito praticado no dia a dia com os novos padrões digitais de negócios. Cito uma evidência diária que reforça esta minha percepção: contratos eletrônicos apesar de serem legais, no Brasil, desde 2002, são preteridos por milhares de operadores do direito e líderes empresariais que preferem se utilizar de contratos em papel por entenderem que são mais seguros juridicamente. Uma total ausência de mindset digital. Como iremos discutir IA se ainda não confiamos em contratos eletrônicos? Por que ainda duvidamos ou discutimos, durante fases negociais, se a assinatura eletrônica tem o mesmo valor probante que uma assinatura expressa em papel e por que relutamos a ter um certificado digital, mas aceitamos em reconhecer firma em um cartório físico?

A situação acima pode parecer ser irônica ( obviamente que é), mas reflete o comportamento de uma sociedade míope que insiste em negar a confluência entre o mundo real e o digital quanto aos aspectos de segurança jurídica. Por conservadorismo? por inércia? por ignorância? qual a causa? Em contrapartida, aplicativos em smartphones, nos fazem assinar contratos eletrônicos todos os dias para solicitar um automóvel, alugar um imóvel, pedir um fast food e ninguém questiona nestes casos, se o direito já se aproximou da tecnologia. Eles já estão integrados desde o nascimento da aplicação. São novas inteligências, com segurança jurídica, aplicada a novos modelos de negócios que estão rompendo padrões comportamentais da mesma sociedade.

Por que para um aplicativo no smartphone não questionamos a assinatura eletrônica, mas para um contrato de compra e venda de um imóvel nos sentimos fragilizados se feito de forma remota e eletrônica.Seria legal ou não? Será que vivemos um paradoxo entre modelos de negócios antagônicos entre si ou somos apenas nós mesmos que não capturamos a essência de um novo mundo que já se transformou, mas a nossa mentalidade ainda insiste em negá-lo?

Então será que o Direito é conservador ou é o ser humano que se utiliza dele, como instrumento, para frear ou negar a sua própria evolução?

Espero ter provocado, na cabeça do leitor deste artigo, o próprio debate interno, para que o tema seja mais fácil de ser deglutido em um novo mundo empresarial mais ágil, mais veloz e muito mais tecnológico que precisa do direito lhe dando mais fortaleza jurídica.

Talvez o hiato entre Direito e Tecnologia amenize.

Bons negócios a todos ! Para contato com o Autor: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.